domingo, 28 de maio de 2017

O DECRETO QUE AUTORIZOU ATUAÇÃO DAS FORÇAS ARMADAS NA GARANTIA DA LEI E DA ORDEM EM BRASÍLIA CUMPRIU A LEI?

                     Sem a pretensão de entrar no mérito quanto à situação política, moral e ética atual do Brasil, pela tensão do momento atual e pelos seus reflexos na ordem pública e por consequência na atividade da Polícia Militar, necessário se faz comentar e clarear sob o aspecto Constitucional, legal e doutrinário pontualmente alguns aspectos sobre a atuação das Forças Armadas na Garantia da Lei e da Ordem.
            
                    O Brasil tem passado por sérios desafios nos últimos meses, sendo que no dia 24 de maio de 2017 (quarta-feira) houve diversos distúrbios na Capital Federal (Brasília) por ocasião de manifestação nacional convocada e organizada pelas centrais sindicais conforme ampla divulgação pela mídia nacional.
                       
                        Tal manifestação, segundo divulgado contou com milhares de pessoas (segundo a Polícia Militar cerca de 45.000 pessoas, muito mais segundo os organizadores) que ocuparam o centro administrativo do Governo do Brasil para realizar suas manifestações.

                        Também milhares (cerca de 3.000 segundo fontes) de Policiais Militares foram empregados no objetivo de preservar a ordem pública (manter e restabelecer quando quebrada) como é recomendável e de praxe nestas situações, cumprindo assim o desiderato Constitucional no que tange a missão da Instituição Polícia Militar.

                        Como é do amplo conhecimento de todos, já que a grande mídia nacional divulgou em tempo real e ainda repercute, a certa altura da referida manifestação houve desobediências generalizadas às ordens da Polícia Militar quanto aos limites da manifestação para evitar dano às pessoas e ao patrimônio.

            A partir daí vários fatos foram ocorrendo em cadeia, os quais trouxeram danos ao patrimônio público e principalmente às pessoas, tanto manifestantes quanto Policiais Militares de serviço.

            A certa altura, já quase ao final da manifestação em questão, o Governo Federal, resolveu intervir expedindo um Decreto de “convocação” das Forças Armadas para garantir a lei e a ordem.

                        Pois bem, agora vem o propósito central do presente artigo, ou seja, em face da Constituição Federal e da legislação vigente, quando é que isso pode e/ou deve ocorrer.

                        Antes da resposta final, no entanto, é necessário trazer à baila os dispositivos constitucionais e legais no que tange as instituições envolvidas e no que se refere a atuação na preservação ordem pública e na “grave perturbação da ordem”.

                        Iniciamos com a Constituição Federal no que trata da Segurança Pública e das Forças Armadas respectivamente:

Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:
I - polícia federal;
II - polícia rodoviária federal;
III - polícia ferroviária federal;
IV - polícias civis;
V - polícias militares e corpos de bombeiros militares.
[...]
§ 5º Às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública; aos corpos de bombeiros militares, além das atribuições definidas em lei, incumbe a execução de atividades de defesa civil.
§ 6º As polícias militares e corpos de bombeiros militares, forças auxiliares e reserva do Exército, subordinam-se, juntamente com as polícias civis, aos Governadores dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios.
[...]   (grifado)
Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.
§ 1º Lei complementar estabelecerá as normas gerais a serem adotadas na organização, no preparo e no emprego das Forças Armadas.
[...]   

                        A Lei Complementar nº 97 de 1999, que dispõe sobre as normas gerais para a organização, o preparo e o emprego das Forças Armadas mencionam especificamente sobre a questão:
Art. 15. O emprego das Forças Armadas na defesa da Pátria e na garantia dos poderes constitucionais, da lei e da ordem, e na participação em operações de paz, é de responsabilidade do Presidente da República, que determinará ao Ministro de Estado da Defesa a ativação de órgãos operacionais, observada a seguinte forma de subordinação:
      I - ao Comandante Supremo, por intermédio do Ministro de Estado da Defesa, no caso de Comandos conjuntos, compostos por meios adjudicados pelas Forças Armadas e, quando necessário, por outros
        [...]
        § 1o Compete ao Presidente da República a decisão do emprego das Forças Armadas, por iniciativa própria ou em atendimento a pedido manifestado por quaisquer dos poderes constitucionais, por intermédio dos Presidentes do Supremo Tribunal Federal, do Senado Federal ou da Câmara dos Deputados.
        § 2o A atuação das Forças Armadas, na garantia da lei e da ordem, por iniciativa de quaisquer dos poderes constitucionais, ocorrerá de acordo com as diretrizes baixadas em ato do Presidente da República, após esgotados os instrumentos destinados à preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, relacionados no art. 144 da Constituição Federal.
        § 3o Consideram-se esgotados os instrumentos relacionados no art. 144 da Constituição Federal quando, em determinado momento, forem eles formalmente reconhecidos pelo respectivo Chefe do Poder Executivo Federal ou Estadual como indisponíveis, inexistentes ou insuficientes ao desempenho regular de sua missão constitucional
        § 4o Na hipótese de emprego nas condições previstas no § 3o deste artigo, após mensagem do Presidente da República, serão ativados os órgãos operacionais das Forças Armadas, que desenvolverão, de forma episódica, em área previamente estabelecida e por tempo limitado, as ações de caráter preventivo e repressivo necessárias para assegurar o resultado das operações na garantia da lei e da ordem.      
        § 5o Determinado o emprego das Forças Armadas na garantia da lei e da ordem, caberá à autoridade competente, mediante ato formal, transferir o controle operacional dos órgãos de segurança pública necessários ao desenvolvimento das ações para a autoridade encarregada das operações, a qual deverá constituir um centro de coordenação de operações, composto por representantes dos órgãos públicos sob seu controle operacional ou com interesses afins
        § 6o Considera-se controle operacional, para fins de aplicação desta Lei Complementar, o poder conferido à autoridade encarregada das operações, para atribuir e coordenar missões ou tarefas específicas a serem desempenhadas por efetivos dos órgãos de segurança pública, obedecidas as suas competências constitucionais ou legais
 [...]   (grifado)

                        Neste sentido o decreto em vigor nº 3.897 de 2001 que fixa as diretrizes para o emprego das Forças Armadas na garantia da lei e da ordem, após considerações muito importantes que justificam sua expedição, determina:

Considerando a missão conferida pelo art. 142 da Constituição às Forças Armadas, de garantia da lei e da ordem, e sua disciplina na Lei Complementar no 97, de 9 de junho de 1999;
Considerando o disposto no art. 144 da Lei Maior, especialmente no que estabelece, às Polícias Militares, a competência de polícia ostensiva e de preservação da ordem pública, dizendo-as forças auxiliares e reserva do Exército;
Considerando o que dispõem o Decreto-Lei no 667, de 2 de julho de 1969, e o Regulamento para as Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares (R-200), aprovado pelo Decreto no 88.777, de 30 de setembro de 1983; e
Considerando o que se contém no PARECER AGU No GM-025, de 10 de agosto de 2001, da Advocacia-Geral da União, aprovado pelo Excelentíssimo Senhor Presidente da República, conforme despacho de 10 de agosto de 2001, publicado no Diário Oficial da União do dia 13 seguinte;
DECRETA:
Art. 1º  As diretrizes estabelecidas neste Decreto têm por finalidade orientar o planejamento, a coordenação e a execução das ações das Forças Armadas, e de órgãos governamentais federais, na garantia da lei e da ordem.
Art. 2º  É de competência exclusiva do Presidente da República a decisão de emprego das Forças Armadas na garantia da lei e da ordem.
§ 1º  A decisão presidencial poderá ocorrer por sua própria iniciativa, ou dos outros poderes constitucionais, representados pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal, pelo Presidente do Senado Federal ou pelo Presidente da Câmara dos Deputados.
§ 2º  O Presidente da República, à vista de solicitação de Governador de Estado ou do Distrito Federal, poderá, por iniciativa própria, determinar o emprego das Forças Armadas para a garantia da lei e da ordem.
Art. 3º  Na hipótese de emprego das Forças Armadas para a garantia da lei e da ordem, objetivando a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, porque esgotados os instrumentos a isso previstos no art. 144 da Constituição, lhes incumbirá, sempre que se faça necessário, desenvolver as ações de polícia ostensiva, como as demais, de natureza preventiva ou repressiva, que se incluem na competência, constitucional e legal, das Polícias Militares, observados os termos e limites impostos, a estas últimas, pelo ordenamento jurídico.
Parágrafo único. Consideram-se esgotados os meios previstos no art. 144 da Constituição, inclusive no que concerne às Polícias Militares, quando, em determinado momento, indisponíveis, inexistentes, ou insuficientes ao desempenho regular de sua missão constitucional.
Art. 4º  Na situação de emprego das Forças Armadas objeto do art. 3o, caso estejam disponíveis meios, conquanto insuficientes, da respectiva Polícia Militar, esta, com a anuência do Governador do Estado, atuará, parcial ou totalmente, sob o controle operacional do comando militar responsável pelas operações, sempre que assim o exijam, ou recomendem, as situações a serem enfrentadas.
§ 1º  Tem-se como controle operacional a autoridade que é conferida, a um comandante ou chefe militar, para atribuir e coordenar missões ou tarefas específicas a serem desempenhadas por efetivos policiais que se encontrem sob esse grau de controle, em tal autoridade não se incluindo, em princípio, assuntos disciplinares e logísticos.
§ 2º  Aplica-se às Forças Armadas, na atuação de que trata este artigo, o disposto no caput do art. 3o anterior quanto ao exercício da competência, constitucional e legal, das Polícias Militares.
Art. 5º  O emprego das Forças Armadas na garantia da lei e da ordem, que deverá ser episódico, em área previamente definida e ter a menor duração possível, abrange, ademais da hipótese objeto dos arts. 3º e 4º, outras em que se presuma ser possível a perturbação da ordem, tais como as relativas a eventos oficiais ou públicos, particularmente os que contem com a participação de Chefe de Estado, ou de Governo, estrangeiro, e à realização de pleitos eleitorais, nesse caso quando solicitado.
Parágrafo único. Nas situações de que trata este artigo, as Forças Armadas atuarão em articulação com as autoridades locais, adotando-se, inclusive, o procedimento previsto no art. 4º.
 [...] grifado

                        Como visto, inicialmente, há um rito a ser seguido para que as Forças Armadas passem a atuar na Garantia da Lei da Ordem, além de, somente o fazer quando esgotados todos os meios existentes das forças de segurança previstas no Artigo 144 da Constituição Federal declaradamente, levando em conta, ainda, que a Polícia Militar é ultima instância da ordem pública normal. É ela a responsável para preservá-la na sua plenitude enquanto ainda normal e não declarada grave por quem de direito (neste caso o Governo do Distrito Federal).

                        Nas considerações mencionadas no decreto acima mencionado, podemos observar que o mesmo foi instituído com base na Constituição Federal artigos 144 e 142, na Lei Complementar 97/99, no Decreto-Lei no 667/69 e seu Regulamento para as Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares (R-200), aprovado pelo Decreto no 88.777/83 e ainda o que consta no PARECER AGU No GM-025, de 2001, aprovado pelo Excelentíssimo Senhor Presidente da República, conforme despacho de 10 de agosto de 2001, publicado no Diário Oficial da União, o que vincula à ele todos os atos da administração pública federal.

                        O que também merece destaque nesta questão é que, segundo a Constituição Federal (§6º, Art 144 CF) a Polícia Militar (juntamente com o Corpo de Bombeiros Militar) é a Força Auxiliar do Exército para casos de grave perturbação da ordem pública, justamente aquelas situações que podem distinguir as situações de violência que ofereçam perigo além da capacidade de resposta dos meios ordinários de manutenção, assim desejou o constituinte originário de 1988 (conforme ao final se esclarece).

                        Assim, a garantia da lei e da ordem é uma faculdade que a União reserva para tratar problemas graves, porém menores sem a utilização de institutos jurídicos mais fortes (Estado de Defesa e/ou Sítio previstos na CF), porém terá que obedecer obrigatoriamente a Constituição Federal e a Lei nos dispositivos citados.

                        O emprego das Forças Armadas, nesses casos, neutraliza o desdobramento da situação de uma grave perturbação da ordem, sem a necessidade do acionamento dos mecanismos de defesa do Estado ou da intervenção federal no Estado membro. É verdade, mas reafirmando: “com a veemência de que o ordenamento jurídico pátrio deve ser rigorosamente obedecido”.

                        Segundo os Diários da Assembleia Nacional Constituinte, que aborda a Subcomissão de Defesa do Estado, da Sociedade e de sua Segurança, relatório este produzido na ocasião pelo Deputado Constituinte Ricardo Fiuza e que deu origem ao texto constitucional sob análise, se extrai:

As situações de ameaça a Segurança Nacional possibilitam a atuação da Polícia Militar como força auxiliar.
Genericamente, trata-se da ruptura ou ameaça da Segurança Nacional que, especificamente, pode assumir qualquer dessas hipóteses:
grave perturbação da ordem pública;
grave comprometimento da paz social;
ameaça à integridade do País; e
ameaça ao funcionamento das instituições vitais da Nação.
Para ficar mais claro, como grave comprometimento de paz social, podemos distinguir as situações de disputa de interesses a tal ponto exacerbada que ponham em risco a própria tessitura solidária da nação, expondo-a a dissolução interna.
Por ameaça à integridade do país, tanto a física como a moral, entendemos os riscos advenientes de ataques externos, subversão e convulsão interna.
Como ameaça ao funcionamento das instituições vitais da nação, podemos entender aquelas ações dirigidas a prejudicar o normal exercício dos poderes essenciais a subsistência do estado de direito.
                        A Menção do texto acima não deixa dúvidas sobre o entendimento que o constituinte originário tinha e desejava ver estampado na Constituição Federal no que se refere à ordem pública normal e sua evolução para a grave perturbação, e o fez justamente para evitar o prematuro emprego das Forças Armadas em situações análogas aqui analisadas.

                        O quadro abaixo foi elaborado pelo antigo EMFA - Estado Maior das Forças Armadas (agora Ministério da Defesa) no ano de 1996 e publicado na revista da ADESG – Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra que leva a assinatura do General Benito Onofre Bezerra Leonel (Chefe do EMFA 1995-1999), para explicar a atuação das Forças Armadas (Marinha – Exército – Força Aérea) e das Forças Auxiliares (Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares) nas situações de Ordem Pública normal e de Grave Perturbação da Ordem Pública.




                        Após o supra exposto, fica evidente que o Governo Federal precipitou-se em baixar o decreto abaixo (o qual não se encontra na base do Governo Federal para consulta):


                        É óbvio que o Governo Federal pode e deve intervir na ordem pública dentro do ordenamento legal brasileiro, no entanto há que seguir um rito previsto pela própria Constituição Federal e pela legislação em vigor.

                        No caso em discussão houve sim, como afirmado, falta de observância do mencionado rito sob alguns importantes aspectos já apontados. A supressão de etapas para intervenção federal na ordem pública do Distrito Federal fica escancarada, pois deveria ter, no mínimo, sido solicitado pelo Governador do Distrito Federal por “falência” de suas forças de segurança, notadamente a Polícia Militar do Distrito Federal e ainda devidamente comprovado, o que todos sabemos não houve segundo declarações do próprio governador.

                        Cabe comentar, entretanto, que as Forças Armadas podem, sem qualquer decretação, guardar os próprios (patrimônio) do Governo Federal, como, aliás, já o faz em relação ao Palácio do Planalto e residências Oficiais através do Batalhão de Guarda Presidencial do Exército Brasileiro, através da Marinha que já o faz em relação ao Palácio do Itamarati, e através de militares das Forças Armadas no Ministério da Defesa e Comando das Forças singulares na explanada dos ministérios e assim por diante.

                        O que se espera é ter “clareado” a situação de emprego das Forças Armadas na Garantia da Lei da Ordem, evitando assim o emprego prematuro, desnecessário e ilegal delas nestas mesmas situações, evitando problemas futuros em virtude do não cumprimento da Constituição Federal e da Lei por falta de conhecimento ou cumprimento das etapas legais.

                        Para finalizar é necessário informar que o intuito não é entrar no mérito da questão e sim somente analisar e esclarecer sobre o ato praticado do Governo Federal.

MARLON JORGE TEZA